quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Vermelho

 
Sorrisos de criança, cachinhos de criança, andar de criança, olhar de criança, jeito de criança. “Tia, me dá uma moeda para me ajudar?”. Realidade adulta.

Não parecem entender, porque correm entre os carros e brincam com as moedas nas mãos, embaixo do viaduto do Glicério. Mas entendem bem. “Tia, você sabe que eu só faço isso porque não tenho condição, né?”, diz a menina de 8 anos, que cuida dela mesma, do dinheiro, e da irmã de 7.

O mundo que não teve condições para acolher você, menina. Você tem condições sim. De se desenvolver, de correr atrás dos seus objetivos, de viver. É inteligente, é cheia de vida. É a realidade  que tem roubado o futuro de você. Sou eu e minhas moedinhas que somos insuficientes.

As meninas têm pais diferentes, mas a mesma mãe, e o mesmo sonho: estudar. Nunca pisaram em uma escola. “Vamos começar no mês que vem, tia”, diz a mais velha, só por dizer, em uma tarde do mês de novembro.

Nas horas vagas, uma copia letras, sem saber juntá-las com sentido. A outra rabisca em cores, sem coordenação motora para desenhar.

Plec, plec, plec, fazem seus chinelinhos de dedo entre a ocupação em que moram e o “escritório”: a rua sob um viaduto sujo, cheio de poluição, motoristas fechados no ar condicionado, nãos, nóias. No caminho, dá tempo para brigarem e se abraçarem, implicarem uma com a outra e brincarem com as formas das nuvens.

“Tia, o farol abriu”, avisa. Ensaia dar um abraço, mas tem vergonha, encolhe-se, sorri e acena com a mão.
 
Os carros passam com seus rumos diversos, enquanto o semáforo continua fechado para elas, vermelho, parado, esperando que uma mão, visível ou invisível, finalmente aperte a botoeira que acelere a mudança de cor. Só que, em São Paulo, a maioria das botoeiras não funciona.

domingo, 27 de outubro de 2013

Distante

Ela sabia que o machismo existia. E o achava um absurdo. Ela temia por suas amigas, mas se sentia feliz por não ser afetada por esse tipo de comportamento.
 
Ela se lembrava só daquela vez em que ouviu um “linda” na rua, seguido de um “ssssssssssss” aspirado, e de uma cara de desejo unilateral. Ah, mas tudo bem, tinha ignorado. E aguentou calada o “vaca metida”, dito pelo mesmo homem, em seguida. Não podia reagir, afinal, “linda” era elogio, não? Ficou confusa, mas deixou passar.

Mesmo assim, ficava feliz por não presenciar atos machistas no seu cotidiano. Tirando aquela vez, na adolescência, que um moleque desconhecido tinha chamado sua atenção numa festa puxando seu rabo-de-cavalo. Mas isso acontecia com todas, era coisa de moleque, né?

Sorriu por não ter vivido nada grave. Só se lembrou de ter ficado ofendida quando, ao sair do metrô, um homem vestido de palhaço a seguiu, quase à meia-noite, e a xingou de vadia, disse que tinha vontade de agredi-la e de matá-la, porque ela não merecia viver. Esses loucos! Qualquer um estava sujeito a topar com um deles...

Balançou a cabeça para espantar a imagem horrenda. E suspirou, com pena das mulheres que sofrem violência, já que ela nunca tinha sido ameaçada por um homem. Apenas naquele dia em que foi acordada, no dia de seu aniversário, por uma ligação. Do outro lado da linha, uma voz masculina dizia saber onde ela morava, e que iria até lá para fazer várias coisas que ela não queria.
 
A mesma voz ligou trocentas vezes de um celular desconhecido, tirou-lhe o sono e a tranquilidade. Até que resolveu usar o telefone fixo. O número era o do bar que ela mais gostava. E onde nunca mais apareceu. Foi bem chato, mas já estava tudo resolvido.

Cansada pelas lembranças, sentiu-se agradecida por o machismo ser algo bem distante de sua vida. Dormiu profundamente.
 
                                           http://mulher.uol.com.br/moda/noticias/redacao/2010/02/04/dita-von-teese-cria-mascara-de-dormir-para-a-moschino.htm
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Praga


                                                         Imagem: www.tudum.com.br

Um ano de parênteses na vida real. Ainda presa às origens, ela se jogou. Mas sabia que tinha data certa para voltar.

Esse dia chegou mais rápido do que esperava. A sensação era a de retomar uma vida passada, fechando a janela do desconhecido por um tempo.

Quanto havia vivido nesse ano! Voltava com a cabeça meio revirada. Revirada de ideias, de aromas, de sabores, de imagens, de pessoas, de sentimentos. Sabia que jamais voltaria a ter os pés pregados no chão.

A roupa de “eu mesma”, da qual se havia despido ao pisar no aeroporto, agora a esperava com uma plaquinha de “seja bem-vinda” no desembarque. Sentiu-se em casa ao respirar o ar capixaba, úmido.

Aguardava o momento de chegar, abrir a porta de seu quarto e perceber seu cheirinho de lar. Queria desfazer as malas pouco a pouco, e colocar as blusas e as histórias no armário. Já se imaginava afofando o travesseiro e os pensamentos, e colocando o “jet lag” para dormir.

Já em casa, entrou com o pé direito, limpando a sapatilha no capacho. Sorriu para a mãe, deu um abraço do tamanho da sua saudade. Agradeceu ao familiar que se ocupou interinamente de parte das suas obrigações. Tomou um copo de água fresca com gosto de acolhimento.

Subiu as escadas com um passo de receio e outro de segurança. Um passo de incerteza e outro de expectativa. Abriu a porta do quarto, onde a vida real a esperava, trancada, havia um ano.

Mas não houve reencontro. Os cupins já haviam devorado tudo.  

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Quase lá

                              "A Persistência da Memória" (1931) - Salvador Dalí
 
Ponteiros, minutos, segundos. Tempo passa, passatempo.
Tic-tac, não vai dar. De novo. Condução lotada, bomba prestes a explodir.
Droga, já chegaram. Eu, ainda não.   
Farol fechado. Uma gota de preocupação rola pela face.
Não vai dar.
Eles se reúnem, começam a operação. Ideias, palavras, folhas.
Eu vejo as folhas que o ônibus arranca das árvores. Sem ideias, sem palavras.
Não vai dar.
Um tranco, uma aceleração. Pode ser. Pode ser?
A imaginação voa longe, e os ponteiros param por um instante.
Chego.
Mais ideias, mais palavras, mais folhas, mais dúvidas.
Tá quase lá.
A operação segue, estão todos. Um calafrio de ansiedade sobe pela espinha.
Não pode explodir, temos de controlar.
Caminhamos, decidimos, suspiramos, hesitamos.
Tá quase lá.
Operação decorada. A confiança entra pelas narinas, estufa o peito, fortalece o passo.
Tá quase lá.
Quase.
Frente a frente com o objetivo, ele escapa por entre os dedos, escorre para baixo.
Bate a porta e foge pelo corredor.
Atônitos, corremos atrás dele.
Temos de chegar.
Os ponteiros param de novo. Prendemos a respiração por braçadas mais rápidas
Temos de chegar.
Última cartada...
Mas nada de Blackjack. Nada de Royal Straight Flush.
O tempo volta a correr como um meteoro, cai e explode. Voam destroços para todos os lados.
Não deu.
O objetivo olha para trás, cínico. Fuma um cigarro de superioridade. Hoje não, pensa. E sorri.
Não deu.  
De novo, não, não assim.
Queria só voltar os ponteiros. Só um pouquinho. Por alguns milésimos.
E, no meio tempo, cortar uma palavra, editar um suspiro, acelerar uma hesitação.
Mas não deu. Explodiu.
Dos destroços surge uma roda.
A mesma roda.
E, dentro dela, os ratos voltam a correr.

domingo, 7 de outubro de 2012

Dia de tomar caldo de cana e de mudar o mundo

Imagem do 'Blog na Luta': http://avancarnaluta2007.blogspot.com.br/ 
 
Desde pequena, dia de votar era dia diferente, dia importante. A feira ficava mais curtinha e cheia de gente, bem em frente ao local de votação. Dava vontade de colocar a roupa preferida e de arrumar o cabelo antes de sair.

Ao lado dos pais, que pareciam gigantes, a sujeira toda assustava. Por que tanto papel jogado? Aquelas caras, no chão, eram feias e, com marcas de pisões, pareciam não prestar para muito. As filas sempre eram grandes e a ansiedade, maior ainda.

Tudo valia pelo momento do X, com a mão da mãe ou do pai por cima, escolhendo o que viria mais para frente. Não entendia a diferença entre PT e PSDB, entre PP e PSTU, nem porque os adultos votavam em um ou o outro. Mas tinha uma bela sensação de participação.

Afinal, domingo de eleição era dia de comer pastel, tomar caldo de cana e mudar o mundo. E o gostinho de tudo isso era doce, bem doce. O sol parecia brilhar mais forte e mais bonito e as pessoas pareciam andar como se caminhassem para o tão falado ‘futuro melhor’.

Até a feira, entidade superior dominical, parava para ver. Quer dizer, andava mais devagar. O moço das panelas não ia, mas sim o das frutas, e sempre dava tempo de passar para pegar as bananas e as maçãs após colocar o papel na urna.

Anos depois, a mesma menininha de rabo de cavalo que descia a rua de mãos dadas até o colégio estaciona o carro nas proximidades. Chegando do trabalho, ou preparada para trabalhar em seguida.

Nos santinhos no chão, pisa com força. Continuam assustadoras aquelas caras de sorrisos plásticos. O X não existe mais, mas ansiedade é pelo barulhinho final da urna eletrônica.

As pessoas, não mais em filas intermináveis, continuam gigantes. Gigantes como o jovem que desceu 20 degraus com o pé direito engessado, apoiado em muletas, e como a senhorinha que os subiu apoiada em sua bengala, com o amparo do neto (a necessidade de registro para zona eleitoral especial precisa de divulgação mais ampla e consistente!).

A feira continua lá, assim como a Brasília azul-calcinha do moço que vende ervas, a banana, a maçã, o caldo de cana. O quilo da uva a quatro reais está muito mais caro, mas está.

Já o gosto doce da garapa se mistura ao cheiro forte da barraca do peixe, que sempre ficou ao lado, mas passava despercebida. Antes e depois do prazer do caldo de cana, esse odor angustiante queima as narinas. Gosto de eleições. Cheiro de eleições.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Detalhes

Foto: http://kid-bentinho.blogspot.com.br/ (não sei de onde o blog tirou)
 
Dia difícil. Sono atrasado, muito trabalho. Semblante fechado após horas e horas trabalhando em frente à tela. As paredes já não existiam: tudo virara um amontoado de informações, notícias, bytes, pensamentos, frustrações, vontades.

Ao fundo, surgiu um conjunto de assobios. Desses melódicos, emocionados. Produzidos por não se sabe quem, não se sabe onde, mas que se propagaram até o quarto andar e me despertaram do transe.

Nem a atenção concentrada, atrapalhada, abafava o som no inconsciente. Eram cinco soprinhos. Um deles mais agudo...

A-há, Roberto Carlos! “Fi-fi-fi-fÍ-fi...” = “Eu tenho tanto....” 

Não sou fã do Roberto Carlos, nunca fui. Mas os assobios me conquistaram.

E continuaram conquistando, a cada dia. Não ocorrem sempre, têm vontade própria. Às vezes de manhã, às vezes à tarde. Às vezes cinco vezes por semana, às vezes uma, sempre em horário comercial.

Quando menos espero, “fi-fi-fi-fÍ-fi”, eles aparecem. Já cheguei a pensar que estava ouvindo coisas, mas me convenci de que deve ser o moço do lava-rápido de carros ao lado do prédio, ou alguém que trabalhe por aqui. 

Não importa. A melodia chega como uma surpresa e resume a vida, por segundos, a um assobio. Quando ela não vem, fica aquela falta suavidade no ar.

Falta a mente vazia pelo tempo de cinco assoprinhos. Falta o gasto de outros quatro assoprinhos (“prá lhe falar”) pensando de onde vem o som. E os derradeiros nove (“mas com palavras, não sei dizer...”) divagando pelos motivos que levam o sujeito ou sujeita a gorjear.  

Depois, o assobio se vai. Nunca avança disso. Não precisa. Ficam as reticências... e toda a imensidão que elas podem esconder.

O dia difícil volta. O sono atrasado volta. O trabalho acumulado também volta. Mas o semblante fica colorido por aquele sorriso de boca fechada, com olhos apertados.

Detalhes tão pequenos e tão grandes. De repente, aparece um lado admirador de Roberto Carlos dentro de mim.

*** O blog de onde tirei a foto tem um post sobre músicas com assobios: http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2011/02/as-melhores-musicas-com-assobios.html 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Amor em SP

Ônibus cheio. Lotado. Sem lugar para se apoiar, nem para respirar adequadamente, encalacrada entre cinco pessoas, ela sentiu seu celular tremer.

- É o gatinho – disse à amiga, que estava sentada sobre o cano amarelo "fosforescente" que delimitava o espaço ao lado do primeiro banco.

Esgueirou-se e, após encostar inocentemente nas coxas do passageiro de trás, tirou o celular do bolso e leu o SMS.

- Kd vc? Tô no ponto.

A moça de longos cabelos negros sorriu. Já não incomodavam mais todos aqueles desconhecidos tocando nela sem querer.

- Tô no bus parado em frente.

- Jééézois!

Ele se espantou. Seu inconsciente talvez lhe dissesse que não caberiam pessoas reais naquela lata de sardinha, para a qual os peixinhos insistiam em continuar se jogando, desafiando as leis da física.

A cada pessoa que ele via empurrar a vítima que sobrava no último degrau do ônibus, ela provavelmente sentia um tranco no quadril. E se irritava.

Tão perto e tão longe. Poucos metros os separavam. Mas cada centímetro era intransponível.

- Olha prá mim, amor!

Ela fez tchauzinho em direção ao ponto, sem encontrar o olhar do amado. Nem a silhueta, nem ao menos ponta do cabelo. Mas, pelo suspiro acanhado, demonstrou sentir um afago em suas madeixas, ou o cheiro de seu perfume favorito.

O telefone tocou. Era ele. Para atender, ela suspendeu o braço. Por muito pouco não deixou a marca do cotovelo no supercílio do passageiro ao lado.

- Alô. (...) Tudo, e você? (...) Não me viu? Ahhh. Fiz tchauzinho prá você. (...) Também vou pra casa, tá tarde. (...) Prá você também (...) Beijo, tchau.

Levantou os dois ombros, em sinal de resignação. A amiga, ansiosa com a demora do ônibus em sair do ponto, ergueu os ombros de volta.

Calor, prova, desconforto, greve, aperto, sono. Voltaram a reclamar dos assuntos de sempre, enquanto as portas do coletivo se fechavam lentamente.